segunda-feira, 2 de maio de 2011

Lembranças dos Cravos

Na segunda-feira passada coloquei um post que falava do 25 de Abril de há 37 anos - escrevi sobre o que me lembrava. À procura de fotografias - queria encontrar uma que tirei ao Zeca em A Barraca durante os ensaios do Zé do Telhado - acabei por encontrar este texto sobre o 25 de Abril (falando do mesmo mas de forma mais completa) que escrevi para oferecer aos meus amigos no 25º aniversário da Revolução. Porque trata da memória de uma semana épica - no final da qual a certeza que não havia volta atrás começava a ganhar dimensão real - achei que podia colocá-la no fecho de uma memória inesquecível, trinta e sete anos depois. Aqui fica, como então a escrevi. 

Lembranças dos Cravos

O telefone tocou às 4 da manhã. Por sorte nem sequer tive pensamentos de susto do tipo morreu alguém! Pensei de imediato que só podia ser o Dário , grosso em qualquer barra de balcão, a lembrar-se dos meus anos (a minha Mãe jura que nasci precisamente a essa hora). Não era, era a Maria João com o habitual sossego na voz:

— É agora. Ou vai ou racha. Liga o Rádio Clube Português. São de que lado? perguntei, a pensar no 16 de Março e com medo do medo dos acossados:

— Dos nossos, sossegou-me. Liga o Rádio Clube. Passa palavra.

Passei. Liguei ao meu Pai, ao Dário, ao Xico Sequeira , a quem me lembrei. E liguei o rádio e a televisão e fiquei à escuta as horas que foram precisas para ouvir: aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, etc. e tal. A coisa compunha-se e percebia-se que eram contra. Do reviralho, pensei lembrando-me como considerávamos, a Graça e eu nos tempos de Soutelo, o Salgado Zenha — um gajo do reviralho.

À hora do costume a Fátima queria sair com o Raul, levá-lo para a creche e seguir para o trabalho. Não foi fácil convencê-la que havia uma revolução na rua e que as faltas injustificadas — era esse o medo de funcionária — não iriam acontecer nunca. Aqui, próximo do Jardim das Amoreiras, neste quarteirão interior a tudo não se passava nada. O senhor Costa tinha aberto como de costume e não fazia a mínima ideia do que pudesse estar a acontecer. Quinhentos metros acima, na Sampaio Pina , viam-se soldados armados. Na Artilharia Um, no passeio central a ver o fundo da rua que do muro do Hospital ou da Manutenção não viria grande mal ao mundo, três ou quatro soldados vigiavam (de metralhadora?).

Em casa a televisão começou a dar, havia mais telefonemas. O Xico apareceu a dizer que ia para o Carmo — tinha ouvido estar lá o Marcelo e os outros. Que sim, que fosse, que o procuraria mais tarde porque iria tentar saber o estado das coisas. Devo ter tentado mais alguns telefonemas e segui até ao Carmo: quase que juro ter ouvido a saraivada que marcou o muro do quartel, embora a remembrança distante já não distinga, com exactidão, o presenciado do ouvido. Mas aposto que nos encontramos — o Dario, o Salvador, o Calixto , o Xico, talvez o Pedro , eventualmente o Samuel — na tasca do galego para beber o branco do costume mas de forma pouco habitual. Rija festa de anos!

Na manhã seguinte, terá sido?, passei na Multiplano . Ainda eram tempos de expectativa. De muita expectativa — e as colónias? e a independência? e os partidos? e os presos políticos? que pensava o MFA de tudo isso? E o emproado do monóculo?

1º de Maio (1978?)
Decidimos ir para Caxias. Era já um ror de gente. Uns — aqueles que ao longo de anos se tinham treinado nisso — gesticulavam à vista, longínqua, das janelas das celas. Enviavam mensagens, avisavam do que se passava e faziam-se entender. Durante horas iam e vinham as mais diversas informações: que iam já sair! que não, que só sairiam aqueles que não-sei-o-quê! que nem pensar, que ou todos ou nenhuns! como se alguém tivesse formado um enorme cordão de passa palavra. E, mais perto ou mais longe do portão, sabia-se o mesmo. Aguentar era a palavra de ordem. Tenho uma vaga lembrança de só de lá ter saído de noite à boleia não sei de quem e depois da libertação dos presos políticos. Se calhar cruzei-me, sem saber, com os pides a caminho da troca. Estava frio e só tinha uma camisa vestida.

O tempo já não tinha a mesma dimensão dos dias que tinha conhecido. Era tanto e tão rápido que cada dia tinha centenas de horas ou a semana centenas de dias. Entre aqui e ali, mais televisão, mais rádio, mais jornais, mais conversa, mais discussão, os momentos passavam à velocidade do pensamento. Estávamos a fazer uma Revolução! Com cravos, quase sem tiros, quase — que espantoso — sem gente do outro lado. Era tudo do contra nas ruas daquele tempo cheias de gente.

1º de Maio (1978?) - Cinema Império
Em todo o lado havia gente, muita gente, gente já sem medo. O país inteiro, como se mais nada houvesse a fazer, armou-se de uma missão: mudar o suficiente para que o tempo não voltasse atrás.

Ia-se aqui, ia-se ali, onde estivesse a acontecer o que quer que fosse. Era uma correria à procura de tudo que se passava ao mesmo tempo. Com o Pedro Lencastre e à custa do seu conhecimento dum fuzileiro, entrámos — já depois da rendição dos pides — no “perímetro de segurança” da António Maria Cardoso onde vi — lembro-me sempre com espanto — um “especialista” puxar de um corta-unhas e, com a lima e gesto simples, abrir as portas de um suspeito Porsche para encontrar um manancial de matracas, boxes e quejandos.

Das memórias abre-se uma branca: não tenho a mínima ideia de comer ou de onde o tenha feito — vivíamos da sande com certeza. E das cervejas e do branco do galego. Mas não havia tempo para parar, ele era o Soares e o Cunhal a chegarem, a malta de Paris ainda desconfiada, era a televisão a dar de tudo, os da Junta a dizerem ao que estavam, os “capitães” a dizerem do deles, o Posto de Comando a pedir para ficarmos em casa e a malta moita! rua com ela numa anarqueirada louca, linda de morrer, naquela forma de ser, por dias, poder absoluto à moda de cada um.

Ia jogar em Praga, pela selecção portuguesa de rugby, a 27, contra a Checoslováquia. Deixaram-me recado em casa a dizer que não compareceríamos ao jogo porque o aeroporto estava fechado. Nem me preocupei mas ainda guardo a camisola.

A 30 de Abril não me levantei mais, fiquei de cama — paga do peitinho feito a correr pela cidade — com um febrão dos antigos.

Vi o Primeiro de Maio pela televisão com olhos remelentos de febre. Vi aquela gente toda a levar horas a passar e, então, percebi: já nada fará isto voltar atrás.

Hoje, vinte e cinco anos de memória traiçoeira que armadilhou a lembrança ao colocar-nos em todo o lado ao mesmo tempo, há apenas, dessa altura, uma certeza que tenho: que a brasa daqueles anos, aquele tudo viver num só instante, já ninguém me tirará.

De hoje, dos nossos dias, tenho outra: o sentimento de que no meu país as condições e qualidade de vida são inegavelmente muito melhores do que alguma vez foram.

Lisboa, 25 de Abril de 1999

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